quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Os Bichos de Lygia Clark: A linha para a Participação na Arte

Por Pâmela Gularte
Introdução:
Este texto apresenta aspectos da obra de Lygia Clark, em especial da série “Bichos”, esculturas metálicas articuláveis que propõe a participação do observador, fazendo de sua autora, uma das pioneiras da arte participativa internacionalmente. Pretendemos investigar o trabalho da artista, situando as obras em seu processo de criação e no contexto contemporâneo.
A pesquisa desenvolve-se inicialmente através do levantamento de dados biográficos, textos críticos, e imagens das obras de Lygia, em seguida analisamos a trajetória da artista para tratar de processo, nos detendo na série bichos para identificarmos os traços do neoconcretismo e o surgimento da participação e interatividade na arte contemporânea.
Os Bichos, dentro das artes visuais, são o que podemos chamar de “a obra prima” de Lygia Clark. Pois é esta série que a consagra a melhor escultora brasileira em 1961. Unindo neles as heranças concretas da geometria e construtivismo, e movimentos orgânicos através das dobradiças, Clark pretende dar vida às suas obras sempre seguindo as sugestões e possibilidades encontradas no diálogo com a linha orgânica por ela descoberta.
 Lygia Clark
Nasceu em 1920 em Belo Horizonte – MG. Foi para o Rio de Janeiro em 1947, e começou a ser orientada em seus estudos artísticos por burle Marx e Zélia Salgado. Em 1950 em Paris onde estuda com Fernando Léger, Arpad Szenes e Isaac Dobrinsk. Nesse período dedica-se a estudos e pinturas a óleo de escadarias e desenhos de seus filhos. Sua primeira exposição individual acontece no Institut Endoplastique, em Paris, em 1952, ano em que retorna ao Brasil e expõe no Ministério da Educação e Cultura – MEC. Em 1954 Clark participa da Bienal de Veneza com a série composições.
Lygia é uma das fundadoras do Grupo Frente no Rio de Janeiro, liderado por Ivan Serpa em, em rejeição à pintura modernista Brasileira de caráter figurativo e nacionalista. O grupo mantinha-se informado nas discussões sobre a abstração concreta, mas havia maior liberdade em relação as teorias de Max Bill. A linguagem geométrica é tida como um campo aberto a experiência e indagação. Nesse contexto é que surgem as “Superfícies Moduladas (1955-57)” e “Planos em Superfície Modulada (1957-58)” de Lygia Clark. Séries que em que ela deslocava a pintura da tela para o espaço ao fazer da moldura - espaço neutro entre a obra e o ambiente – parte da obra, ganhando a mesma cor da tela, sendo uma continuidade da mesma com a projeção das figuras geométricas.
Em 1956 acontece a Primeira Exposição Nacional de Arte Concreta, organizada pelos concretos de São Paulo com participação do grupo carioca onde inicia-se a cisão do movimento concreto, que se dá oficialmente em 1959. Clark integra a Primeira Exposição de Arte Neoconcreta, assinando o Manifesto Neoconcreto juntamente com Amilcar de Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissmann Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanudis.
Nas “Unidades”, Lygia vivencia muito bem o plano, dialogando com Mondriam, sem que o imitasse em aparência, mas dando um passo adiante na verticalidade e temporalização da do espaço pictórico. Assim, o espaço vai se construindo como um novo suporte para sua arte. Os “Casulos (1959)” são feitos em metal. O Plano é dobrado exigindo a tridimensionalidade, mesmo que ainda fiquem lá, pendurados na parede.
Até que dos Casulos surgem os “Bichos”: Esculturas feitas de alumínio, possuindo formas geométricas articuláveis por suas dobradiças. Lygia Clark torna-se uma das pioneiras na arte participativa ao convidar o observador a “brincar” com os bichos, manipulando-os, dialogando e descobrindo possibilidades de formas para essas estruturas. Com eles, os “Bichos”, é que Clark é consagrada melhor escultora nacional na VI Bienal de São Paulo em 1961.
Da madeira dura ao metal à borracha na “Obra Mole (1964)”. Lygia começa a preocupar-se com o corpo. Em caminhando, era no cortar da fita que se dava a obra. As sensações começam a ser valorizadas nos seus “Objetos Sensoriais (1966-68)” através das texturas de objetos do cotidiano como conchas, água, borracha, sementes... Na instalação “A casa é o corpo (1968)” as pessoas passavam por ambientes chamados: penetração, ovulação, ovulação e expulsão.
Volta a residir em Paris entre 1970 e 1976, quando é convidada a lecionar em um curso sobre comunicação gestual na faculte d’Plastiques St Charles, na Sorbonne. Em suas aulas as experiências do grupo se apoiavam na manipulação dos sentidos, pois nesse período, afasta-se da reprodução de objetos estéticos e volta-se a experiências corporais em que os materiais estabelecem relação entre os participantes. É assim que surgem as proposições “Rede de Elástico”, “Baba Antropofágica” e “Relaxação”.
Voltando para o Brasil, passa a uma produção com fins terapêuticos. Faz uma abordagem individualizadas com os “Objetos Relacionais”, trabalhando as memórias, medos e fragilidades de seus pacientes pelo sensorial.
Em 1981 começa diminuir o ritmo de suas atividades. O “Livro-Obra”, que relata a trajetória da artista até o final de sua fase neoconcreta, através de estruturas manipuláveis e textos por ela escritos, é publicado em edição de apenas 24 exemplares.
O IX Salão de Artes Plásticas em 1986 no Passo Imperial do Rio de Janeiro, tem uma sala especial dedicada a Lygia Clark e Helio Oiticica. Lygia falece em abril de 1988. 
 A linha orgânica
O que faz uma artista sair das pinturas a óleo e desenhos à proposições terapêuticas da arte?
Ao compararmos as obras e proposições clarkianas, em primeira vista, talvez não encontremos relação entre elas. Mas logo que mergulhamos um pouco abaixo do que é superficial e passamos a fazer uma adequada leitura e apreciação de seu trabalho, podemos perceber claramente uma coerência em seu processo de criação, a qual Lygia compara a uma “linha puxada”.  Ela afirma: “O trabalho tem uma linha, embora você olhando ache que não tem nada a ver uma coisa com a outra, quer dizer, formalmente, não tem nada realmente, mas no sentido de conceito é inquebrável.”.
Risonete A. P. de Andrade (1961) observa que essa linha não existe apenas metaforicamente, pois Clark a descobre ao observar uma linha de contato entre dois tons contrastantes, constatando que é absorvida, enquanto que ao unir duas cores iguais, aparece. Para Lygia Clark, a linha “existia em si, não era uma linha desenhada, gráfica, e possuía possibilidades intrínsecas a elas mesma”. A artista chamou-a “linha orgânica” e confessa que somente a partir dessa descoberta, não houve influência de mais ninguém em seu trabalho. Nas palavras de Andrade:
A linha orgânica, ao longo da trajetória da artista, assume formas variadas e aspectos diversos: do elemento plástico definidor da composição vira linha-luz, que se transmuda em linha-espaço e linha-tempo, migra em direção à “dobra”, para em seguida, em foram de dobradiça, converter-se em “espinha dorsal”, depois, pelo corte, em “trajeto” que dará origem a outras metáforas. O percurso artístico de Lygia Clark é o percurso da linha orgânica e vice-versa.  
 
De fato, a linha está presente unindo o ambiente e a pintura em quebra da moldura, depois, entre o relevo dos módulos de madeira como o espaço penetrando a própria obra. Ela (a linha) é que pede/permite o dobramento do plano, fazendo com que a obra, em “casulos”, tanto tenha um espaço interno, quanto exija, com a tridimensionalidade, certa ocupação do espaço do ambiente. Quando de repente, a linha orgânica das dobras dos casulos transforma-se em espinha dorsal nos bichos.

Os bichos
Usando placas de metal unidas com dobradiças, dobrando-as, fazendo com que de formas planas surja o volume... Assim Lygia faz os bichos, que embora compostos por formas geométricas trazem em si uma carga maior de organicidade do que de construtivismo. Pois são seres constituídos de várias possibilidades de movimentos, estruturadas através da linha orgânica, que aparece como colunas vertebradas.
Como escultura, os bichos já são interessantes e diferentes por terem mais haver com espacialidade do que massas e volumes, o tradicional da época.
Assemelha-se às superfícies moduladas, justamente por ser feito em módulos. A lógica e a matemática do construtivismo continua presente, porém de forma mais intuitiva que calculada a despeito do concretismo. Mesmo assim, a artista costumava dizer que os bichos vem dos casulos que caem da parede ao chão, segundo Mário Pedrosa. Lygia conserva no processo o metal, as dobras... Incorporando, é claros, as dobradiças, trazendo uma novidade importantíssima:a participação do expectador na obra de arte.
Clark firma então um compromisso com a arte e a vida, fazendo-as aproximarem-se. Afirma que seus “bichos” têm vida própria.
Um bicho não é apenas para ser contemplado e mesmo tocado. Requer relacionamento. Ele tem respostas próprias, e muito bem definidas para cada estímulo que vier a receber.
Lygia afirma em texto escrito durante a fase em que criava os bichos que quando alguém lhe perguntava sobre quantos movimentos um Bicho poderia realizar ela respondia: “Não sei nada disso, você não sabe nada disso, mas ele sabe...”.
Foram criados para serem, não manipulados, mas interativos com o observador/fruidor.  A obra só se completa quando as pessoas interagem com ela.
O observador não é apenas observador, ele dialoga, recria... Esse corpo-a-corpo era o que interessava a priori para a artista. Os bichos foram feitos para serem reproduzidos em série, vendidos a muitos e em toda parte. Protesto contra a arte elitista. No entanto para Lygia, a arte deveria pertencer a todos, estar em todo lugar em que se a desejasse. Quem “brincasse” com um bicho, era de certa forma também um artista.
Essas obras de Lygia Clark inspiram imaginação, como quando procuramos ver desenhos nas nuvens, pois seu geometrismo não é, de forma alguma, frio. Entretanto, suas linhas dinâmicas suas posições variadas remetem ludicamente ao observador/interator a fazer associações formais com seres vivos em suas múltiplas configurações. A própria Lygia coloca nome em alguns com base no que representam em certo momento: caranguejo, invertebrado...
Arte, participação e interação
Ao observarmos as características recorrentes nas artes a partir da pós-modernidade, podemos perceber a importância que a participação do espectador passar a ter para a realização das obras.
Segundo Sandra Montardo, esse aspecto da arte contemporânea já se preconizava no modernismo quando os artistas passam a se preocupar com o diálogo entre apreciador e obra de arte. Para ela, isso já é interatividade, e o que muda na contemporaneidade são as formas de com que esse caráter é apresentado.
Enquanto que para Júlio Plaza, as obras estão divididas em graus de recepção e abertura, sendo que no primeiro grau estão aquelas que tem várias possibilidades de interpretação; no segundo (onde inclui os bichos de Lygia Clark), arte de participação, manipulação, e interação física com a obra; e somente no terceiro grau as interativas que se dão preferencialmente na relação homem-máquina, como uma efetiva comunicação com a obra através da tecnologia que responde diferentemente a cada pessoa. Seria então inadequado chamar os bichos de Clark de arte interativa.
A proposta de Lygia, porém, é que haja comunicação além do diálogo visual e/ou da re-criação. Os bichos existem por si mesmos, tem vida própria, segundo ela, ficam aguardando alguém com quem conversar. Conversar dizemos, porque os estímulos que o apreciador/interator dispensa a eles são como perguntas que logo recebem respostas e em seguida são replicadas com a reação do apreciador. É nesse momento que realmente são bichos, que se vêem além da construção espacial-geométrica, os movimentos orgânico-biológicos. Há por tanto as duas coisas: a interação física e a comunicação.
Segundo a reflexão de Simone Osthoff, o desenvolvimento de novas tecnologias e o crescente número de artista que trabalham com comunicação digital tem trazido à tona a discussão sobre o papel interatividade nas mídias digitais. Interatividade e participação na arte, no entanto, não seriam apenas resultado da presença da acessibilidade dos computadores, mas parte de um desenvolvimento natural da arte contemporânea no qual Lygia Clark teve grande influência nacional e internacionalmente como pioneira falando em  participação e interação.
Os bichos hoje
Atualmente, trabalhos artístico-digitais que propõe a participação nos fazem voltar o olhar às obras de Lygia. O website www.espacoperceptivo.net que enfoca a algumas partes da trajetória da artista através da interação do navegador. E também os “Bichos Impossíveis” de Alexandre Rangel, esculturas digitais manipuláveis através de um controle remoto de vídeo-game (demonstração em vídeo no site www.quasecinema.org)
Apesar de inspirarem a interatividades nas novas mídias bem como na produção plástica, os bichos se encontram cada vez mais fetichizados, retrocedem ao pedestal segundo Maria Alice Milliet, vendidos os originais por muito dinheiro, e, “empalhados” como diz Fernando Paiva ao comentar sobre exposição no Museu de Arte Contemporânea (MAC) de Niterói, onde não se podia sequer chegar muito perto do bicho que foi feito para a interação.
Conclusão:
A trajetória artistica de Lygia Clark traz-nos uma ampla idéia de como se dá o processo de criação de um artista contemporâneo e de como vai amadurecendo seu trabalho. Percebemos a importância da linha orgânica nas investigações e pesquisas plásticas desta artista.  Há um momento em que Lygia chega ao auge de sua arte e passa a “confundi-la” com a vida, rompendo uma tênue linha, o que a faz declarar-se “não-artista”, mas terapeuta. Consideramos os bichos como as obras que melhor representam esse “auge” antes da transição.
Os bichos são atualmente as obras mais conhecidas, caras e desejadas da artista, pela beleza como escultura espacial, mas, sobretudo pela importância desses dentro da obra de Clark, que traz novas de participação e interatividade que serão nos anos que se seguem uma das características em voga na arte contemporânea, foco de reflexões e discussões.
Enquanto suscita cada vez mais obras interativas, inclusive eletrônicas e digitais, através de sua importância histórica, a série de Lygia já não tem mais a mesma função de interatividade. Sendo, contudo cada vez mais importante na história da arte contemporânea.

Referencias bibliográficas:
Impressos:
ANDRADE, Risonete A.P., Lygia Clark: A Obra é o seu Ato: dos casulos ao caminhando. 2003. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2003.
PEDROSA, Mário. Significação de Lygia Clark. In LYGIA Clark. Rio de Janeiro: Funarte, 1980. P. 14-17.
MILLET, Maria Alice. Lygia Clark: obra-trajeto. São Paulo: Edusp, 1992.
 PLAZA, Julio. Arte e Interatividade: autor-obra-recepção. Revista de Pós-graduação, CPG, Instituto de Artes, Unicamp, 2000.
MONTARDO, Sandra. P. . Interatividade como acesso á obra de arte na época da imagen do mundo. 2002. (Apresentação de Trabalho/Seminário).
Mídias eletrônicas:
ASSOCIAÇÃO CULTURAL – O MUNDO DE LYGIA CLARK. Biografia disponível em: <http://www.lygiaclark.org.br/biografiaPT.asp/>   
CLARK, Lygia. "Bichos", disponível em: <http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=15/>
 OSTHOFF, Simone. Lygia Clark and Hélio Oiticica: a legacy of interactivity and participation for a telematic future. Leonardo, v. 30, n. 4, 1997. Disponível em: http://mitpress2.mit.edu/e-journals/Leonardo/isast/spec.projects/osthoff/osthoff.html.
PAIVA, Fernado. O bicho empalhado de Lygia Clark. Revista Paradoxo, 2005. Disponível em: <http://www.revistaparadoxo.com/materia.php?ido=1947/


Nota:
1 Escrevi este artigo sem ter visto as obras de Lygia Clark pessoalmente. Na Pinacoteca de São Paulo pude ver algumas de suas obras. Me impressionam. Decepção porém não poder interagir com os bichos que estavam bem ali, na minha frente, depois de tanto ler, pensar escrever e ver fotos sobre eles. Confesso que não faz sentido ler a frase sobre interação ao lado dos bichos ali "empalhados". Escrevo mais sobre num próximo post.
2 Em 2012 no Itaú Cultural (São Paulo), tive o privilégio de brincar com réplicas dos Bichos da Lygia e participar de várias outras obras como a instalação "A casa é o corpo". Foi incrível! Realmente a participação dá uma nova compreensão desse tipo de arte.

6 comentários:

  1. muito bom esse assunto
    me ajudou no meu trabalho de artes!!!!
    obrigada por quem envio esse texto ,muito bacana.

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  2. Ótimo texto, muito informativo! Precisava de informações sobre a série "Bichos" e agora sei o que precisava.

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  3. Obrigada Amei o texto, me ajudou em meu seminário. Renata :)

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  4. Também agradeço Pâmela, me ajudou bastante. Eu tinha visto um Bicho no Museu de Arte do Rio, e agora eu conheci sua origem. Paz!

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